segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Identidade Cultural x Preconceito


Descobriram que seu sobrenome era Canibá. E ele fora chamado pela coordenação do curso de Alfabetização Solidária (acredite!), do qual participaria por quinze dias, para prestar os seguintes esclarecimentos:

1. Você já se socializou?
2. Você seria capaz de atacar um de nós?
3. Seu pai e sua mãe, como são?
4. Como é sua convivência com os outros de sua tribo?

E o pobre Canibá foi tranqüilamente, embora ofendido e constrangido, respondendo a cada uma das perguntas dos professores do Departamento de Ciências Humanas de uma universidade daqui de nossa região.

Enquanto ele ia me contando esse fato eu ia ficando estarrecida. Como assim? Um grupo de professores de uma universidade? Pessoas do Departamento de Ciências Humanas? Como pode uma instituição acadêmica agir com tamanho preconceito? Ainda não entendi.

Canibá teria passado o maior constrangimento de sua vida dentro da academia.

Aquele não seria o único, mas ao meu ver, o pior.

Gente comum, dita ignorante, cometer tamanho preconceito com um índio já é inadmissível. Ser interpelado, porém, por um grupo de professores de nível superior, dotados da tola arrogância de pertencer à civilidade deve ser sido algo digno de nota. Tanto que o Canibá usou esse exemplo para me provar quanto preconceito sofre.

Eu me lembrei, enquanto ele contava a sua história, da seguinte pergunta: “se um canibal começasse a comer de garfo e faca ele seria considerado civilizado?” Até hoje eu havia guardado esta frase para criticar as regrinhas de etiquetas que querem empurrar em nós goela abaixo. E só agora percebi quanta indelicadeza ela guarda ao comparar costumes de tribos diferentes.

Se a comparação é rasa a tendência é tecer comentários horrendos sobre o que não se conhece direito ou sobre o que se tem medo.

Não estou defendendo práticas de antropofagia. Estou criticando a desumanidade e a perversidade com que tratamos pessoas em nome de nossos questionáveis valores.

E o que conhecemos dos índios atualmente, de um modo geral, além da triste e equivocada idéia de que eles não têm cultura e de que são “primitivos”?

O sábio pai do Canibá teria retirado o “L” final do sobrenome dos filhos pois o que ele sofrera de preconceitos já teria sido o suficiente para forçá-lo a proteger seus filhos da intolerância e do preconceito das pessoas.

Ainda assim, por toda a vida, Canibá teria, como grande índio, sangue puro, de responder gentilmente: “se estou aqui nesta cidade há tanto tempo e não ataquei ninguém ainda é porque não vou mutilar vocês. Fiquem tranqüilos.”

Guardei essas palavras daquele gentil rapaz no coração para tentar me fazer mais humana.

Que eu nunca fale coisas desse tipo a ninguém.

Que eu nunca julgue as pessoas com minha suposta bondade.

Que eu seja gente igual a meu amigo Canibá.


(Canibá é Técnico, cidadão respeitoso, inteligente e educado, embora tenha acolhido nossa cultura, vestindo-se como nós e não conheça nenhuma língua indígena. Neto de índio Canibal, filho de um pai zeloso e bom, Canibá é uma pessoa com quem a gente cresce por estar junto).

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